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O que NÃO É a eficácia de uma vacina

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Fe­liz­mente, a va­ci­na­ção con­tra a Covid-​19 está ace­le­rando muito em di­ver­sos paí­ses, fato que even­tu­al­mente le­vará a uma re­du­ção drás­tica no nú­mero de casos, in­ter­na­ções e mor­tes pela do­ença. Du­rante o ano de 2020, vol­ta­mos nossa aten­ção ao de­sen­vol­vi­mento das va­ci­nas, as quais, ape­sar de terem sido de­sen­vol­vi­das em ve­lo­ci­dade re­corde, pa­re­ciam gerar novos dados a conta-​gotas. Ao fim, a efi­cá­cia foi a grande es­trela do no­ti­ciá­rio: tí­nha­mos não ape­nas uma, mas vá­rias va­ci­nas se­gu­ras e efi­ca­zes!

No en­tanto, um foco ex­ces­sivo foi dado à tal efi­cá­cia. To­ma­mos va­ci­nas há mui­tos anos e se­quer sa­be­mos suas efi­cá­cias — elas sim­ples­mente fun­ci­o­nam. As va­ci­nas con­tra a Covid-​19, in­de­pen­den­te­mente da efi­cá­cia de cada uma, vão su­pri­mir a pan­de­mia quando grande parte da po­pu­la­ção for va­ci­nada. Ainda assim, a efi­cá­cia já se tor­nou as­sunto po­pu­lar e, sur­pre­en­den­te­mente, não en­con­trei fon­tes com uma ex­pli­ca­ção sim­ples e cor­reta do que é a tal da efi­cá­cia.

Afi­nal de con­tas, o que é a efi­cá­cia de uma va­cina? Vamos aqui de­fi­nir a efi­cá­cia e olhar o que ela não é. De­fi­nir o não é a efi­cá­cia é uma boa forma de re­mo­ver in­ter­pre­ta­ções equi­vo­ca­das que já estão nas nos­sas men­tes.

A efi­cá­cia de uma va­cina (E) é de­fi­nida como:

E=1RRE = 1 - RR

Sendo RR o Risco Re­la­tivo entre os gru­pos que to­ma­ram va­cina ou pla­cebo nos tes­tes de fase III:

RR=Risco grupo vacinadoRisco grupo placeboRR = \frac{Risco\ grupo\ vacinado}{Risco\ grupo\ placebo}

Assim, se ao final de um es­tudo com 1000 pes­soas em cada grupo há 340 in­fec­ta­dos no grupo pla­cebo e 79 no grupo va­ci­nado, temos:

Risco grupo vacinado=791000=0.079Risco\ grupo\ vacinado = \frac{79}{1000} = 0.079 Risco grupo placebo=3401000=0.34Risco\ grupo\ placebo = \frac{340}{1000} = 0.34

A efi­cá­cia da va­cina é:

E=10,0790,34=10.232=0.768E = 1 - \frac{0,079}{0,34} = 1 - 0.232 = 0.768

Ou seja, a efi­cá­cia dessa va­cina fic­tí­cia é de 76,8%. O que isso não sig­ni­fica?

1) Pro­ba­bi­li­dade de al­guém ficar do­ente

Quando os re­sul­ta­dos de efi­cá­cia da Co­ro­na­vac saí­ram, houve ana­lo­gias bem-​intencionadas e ou­tras ma­li­ci­o­sas sobre sua efi­cá­cia.

Não de­sis­tam do tra­ta­mento pre­coce. Não de­sis­tam, tá? A va­cina é para quem não pegou ainda. E esta va­cina que está aí é 50% de efi­cá­cia. Ou seja, se jogar uma mo­e­di­nha para cima, é 50% de efi­cá­cia. Então, está li­be­rada a apli­ca­ção no Bra­sil.
No­tí­cia do Valor Econô­mico1

Fora o ca­ra­ter po­lí­tico, a fala car­rega um erro comum sobre o que é a efi­cá­cia. A ana­lo­gia com a moeda dá a en­ten­der que uma pes­soa va­ci­nada tem 50% de chance de não ficar do­ente e 50% de chance de ficar do­ente. Isso é falso. Uma pes­soa pre­cisa en­trar em con­tato com uma quan­ti­dade su­fi­ci­ente de vírus por tempo su­fi­ci­ente para se in­fec­tar, e so­mente essas podem ficar do­en­tes ou não. A efi­cá­cia é uma re­du­ção do risco re­la­tivo, ou seja, em re­la­ção a um grupo não va­ci­nado nos tes­tes. Se a chance de ficar do­ente fosse “ale­a­tó­ria” como uma moeda jo­gada para o alto, as pes­soas dos gru­pos pla­cebo e va­cina fi­ca­riam do­en­tes na mesma pro­por­ção, le­vando a efi­cá­cia a 0. Assim, o ce­ná­rio é bem me­lhor do que 50% de chance de ficar do­ente. Se sua pro­ba­bi­li­dade de ficar do­ente nos pró­xi­mos 6 meses fosse, di­ga­mos, de 20%, com essa va­cina ela seria de 10% (re­du­ção re­la­tiva de 50%), se mais nada mu­dasse.

2) Pro­por­ção de pro­te­gi­dos na po­pu­la­ção

Uma ideia bem comum e que cir­cula muito é que, se a efi­cá­cia de uma va­cina é de 80%, então 80 em cada 100 va­ci­na­dos. É bas­tante in­tui­tivo. Mas essa ex­pli­ca­ção sim­pli­fica tanto o con­ceito que acaba trans­mi­tindo uma in­for­ma­ção equi­vo­cada. Na re­a­li­dade, as va­ci­nas em geral in­du­zem res­posta imune em pra­ti­ca­mente todos os va­ci­na­dos (leia mais aqui e aqui). É ver­dade que a res­posta imune varia entre in­di­ví­duos, mas isso não sig­ni­fica que, no caso de 50% de efi­cá­cia, 50% das pes­soas estão des­pro­te­gi­das. Quase todos os va­ci­na­dos apre­sen­tam res­posta imune, mas dois fa­to­res fazem com que al­guns fi­quem do­en­tes mesmo assim: pri­meiro, há pes­soas cujos sis­te­mas imu­nes não fun­ci­o­nam tão bem, deixando-​as mais sus­ce­tí­veis a in­fec­ções; se­gundo, mas não menos im­por­tante, se expor ao vírus bre­ve­mente no su­per­mer­cado ou con­ver­sar por horas sem más­cara com al­guém in­fec­tado leva a uma ex­po­si­ção muito di­fe­rente, o que au­menta a pro­ba­bi­li­dade de ficar do­ente mesmo es­tando va­ci­nado. Uma mis­tura des­ses fa­to­res imu­no­ló­gi­cos (va­ri­a­ção entre as pes­soas) e am­bi­en­tal (ex­po­si­ção ao vírus) ex­plica em grande parte por­que é pos­sí­vel ficar do­ente mesmo após a va­ci­na­ção. Isso não é sur­pre­en­dente, dado que é pos­sí­vel se rein­fec­tar com di­ver­sas do­en­ças.

Lem­brando da de­fi­ni­ção de efi­cá­cia: é um risco re­la­tivo entre va­ci­na­dos e grupo pla­cebo. Dizer a por­cen­ta­gem de pes­soas que não fi­ca­riam do­en­tes após a va­ci­na­ção seria um risco ab­so­luto. Para calculá-​lo, seria ne­ces­sá­rio pro­po­si­tal­mente expor pes­soas va­ci­na­das ao vírus em um la­bo­ra­tó­rio, o que seria ob­vi­a­mente an­tié­tico. Além disso, como vimos acima, a ex­po­si­ção ao vírus pode va­riar muito, tor­nando esse re­sul­tado de pouca uti­li­dade no mundo real. Por isso, os es­tu­dos de fase III (para de­ter­mi­nar efi­cá­cia) são con­du­zi­dos em gran­des gru­pos que se­guem sua vida nor­mal­mente sem saber se to­ma­ram va­cina ou pla­cebo, para ten­tar mi­me­ti­zar ao má­ximo as con­di­ções reais nas quais as pes­soas se ex­põem ao vírus.

Assim, pra­ti­ca­mente todos que to­ma­ram va­ci­nas estão pro­te­gi­dos em al­guma me­dida. A efi­cá­cia nos in­forma quão menor é o risco de ficar do­ente em re­la­ção a quem não foi va­ci­nado no es­tudo.

3) Pro­ba­bi­li­dade de eu ficar do­ente

Você então pode estar pen­sando: ótimo, quanto eu tomar uma va­cina, es­ta­rei pro­te­gido, já que a efi­cá­cia não é a pro­por­ção de pes­soas pro­te­gi­das. Isso é ver­dade, mas há mais um de­ta­lhe. A efi­cá­cia é cal­cu­lada a nível co­le­tivo e não in­di­vi­dual. O risco re­la­tivo é cal­cu­lado a par­tir do nú­mero de pes­soas que ti­ve­ram sin­to­mas em cada grupo. Assim, a efi­cá­cia é a re­du­ção média de risco re­la­tivo para o grupo todo. Não é pos­sí­vel saber a efi­cá­cia in­di­vi­dual, pois o cál­culo de­pende de dados de um grande nú­mero de pes­soas. Assim, é ra­zoá­vel as­su­mir que mais ou menos me­tade das pes­soas tem um risco re­la­tivo acima da média, en­quanto a outra me­tade, abaixo. Dessa forma, a rigor é im­pos­sí­vel saber qual é o seu nível de pro­te­ção após a va­cina, e exa­mes so­ro­ló­gi­cos e afins não vão aju­dar. Sa­be­mos de al­guns fa­to­res que in­flu­en­ciam essa pro­te­ção: em geral, pes­soas mais ve­lhas ou imu­nos­su­pri­mi­das apre­sen­tam al­guma re­du­ção da efi­cá­cia das va­ci­nas, por exem­plo. Ainda assim, é ra­zoá­vel supor que, em geral, sua pro­te­ção, caro lei­tor, deve ser mais ou menos pa­re­cida com a efi­cá­cia ob­ser­vada na po­pu­la­ção do es­tudo.

Assim, vamos pre­su­mir que você tomou uma va­cina com 60% de efi­cá­cia. Isso quer dizer que, caso você se en­con­tre com al­guém in­fec­tado, há 40% de chance de ficar do­ente? Como você já deve ima­gi­nar, não. A efi­cá­cia é um risco re­la­tivo, por­tanto a chance é 60% menor do que uma pes­soa não va­ci­nada na mesma si­tu­a­ção. Por um lado, isso é ótimo: a chance de se in­fec­tar nunca é 100% em cada si­tu­a­ção e, por­tanto, uma re­du­ção de 60% leva a uma chance menor que 40% de se in­fec­tar. Por outro lado, nos ex­po­mos re­pe­ti­das vezes no co­ti­di­ano. Assim, o fato de ser um risco re­la­tivo faz com que a chance de se in­fec­tar após a va­ci­na­ção de­penda di­re­ta­mente da chance de se in­fec­tar na sua re­gião e da sua ex­po­si­ção. Ou seja, quanto maior o nú­mero de pes­soas in­fec­ta­das em uma re­gião ou país, maior o risco de se in­fec­tar, es­tando va­ci­nado ou não. Os 80% de re­du­ção se dão em cima do risco da­quela po­pu­la­ção. E é claro, se você se ex­pu­ser mais, sua chance de se in­fec­tar au­menta pro­por­ci­o­nal­mente mesmo va­ci­nado.

4) Se estou va­ci­nado, é im­pos­sí­vel ter um qua­dro grave

In­fe­liz­mente, até mesmo veí­cu­los con­fiá­veis es­pa­lha­ram esse pen­sa­mento (exem­plos aqui, aqui e aqui). Na mai­o­ria dos es­tu­dos fase III, não houve ne­nhuma morte ou até mesmo ne­nhuma pes­soa com qua­dro grave no grupo va­ci­nado. Por­tanto, a efi­cá­cia é nu­me­ri­ca­mente de 100%. Não existe efi­cá­cia real de 100%. Os es­tu­dos de fase III ape­nas não con­ti­nu­a­ram por tempo su­fi­ci­ente para que hou­vesse um caso grave ou morte no grupo va­ci­nado. Em geral, o nú­mero de mor­tes foi pe­queno mesmo no grupo pla­cebo, sim­ples­mente pela curta du­ra­ção dos es­tu­dos. Assim, po­de­mos afir­mar que a efi­cá­cia con­tra casos gra­ves e mor­tes deve ser bem alta e muito pro­va­vel­mente maior do que a efi­cá­cia para casos leves, mas a ver­dade é que **não sa­be­mos qual é esse nú­mero exato, pois não há dados su­fi­ci­en­tes.

A alta efi­cá­cia con­tra casos gra­ves deve ali­viar os hos­pi­tais mesmo di­ante de um au­mento mo­de­rado no nú­mero de casos na co­mu­ni­dade. Ainda assim, quanto maior o nú­mero de casos (di­ag­nos­ti­ca­dos ou não) na sua re­gião, maior será o risco de se con­ta­mi­nar e, por­tanto, maior será o nú­mero de va­ci­na­dos in­ter­na­dos e even­tu­al­mente mor­tos, já que a re­du­ção no risco é re­la­tiva e nunca chega a 100%, mesmo que che­gue quase lá.

Con­clu­sões

Vamos re­lem­brar a de­fi­ni­ção da efi­cá­cia de uma va­cina:

E=1RRE = 1 - RR

Sendo RR o Risco Re­la­tivo entre os gru­pos que to­ma­ram va­cina ou pla­cebo nos tes­tes de fase III:

RR=Risco grupo vacinadoRisco grupo placeboRR = \frac{Risco\ grupo\ vacinado}{Risco\ grupo\ placebo}

A efi­cá­cia é a re­du­ção re­la­tiva do risco que pes­soas va­ci­na­das apre­sen­tam na média em re­la­ção a um grupo não va­ci­nado nos es­tu­dos. Assim, todos os va­ci­na­dos estão pro­te­gi­dos em al­guma me­dida, o que não quer dizer que não é pos­sí­vel ficar do­ente. Como essa re­du­ção é re­la­tiva, sua chance de se in­fec­tar es­tando va­ci­nado de­pende di­re­ta­mente do nú­mero de pes­soas in­fec­ta­das na sua re­gião no mo­mento. Soma-​se a isso o fato de as pes­soas mu­da­rem seu com­por­ta­mento após tomar uma va­cina: por se sen­ti­rem mais pro­te­gi­das, elas aca­bam se per­mi­tindo cor­rer mais risco. Isso é ra­zoá­vel, mas pode con­tri­buir para um au­mento dos novos casos en­quanto uma mi­no­ria está va­ci­nada.

Se o nú­mero de casos subir con­si­de­ra­vel­mente após uma pes­soa se va­ci­nar, é pos­sí­vel que ela tenha um risco si­mi­lar de ficar do­ente ao que tinha antes de se va­ci­nar. Isso não é pes­si­mismo vão: as va­ci­nas con­se­gui­ram eli­mi­nar do­en­ças al­ta­mente con­ta­gi­o­sas de mui­tos paí­ses (sa­rampo e ru­béola, por exem­plo) e até de ex­tin­guir a va­ríola do mundo. A va­cina da gripe apre­senta uma efi­cá­cia de 40-60% e mesmo assim é per­fei­ta­mente capaz de evi­tar sur­tos epi­dê­mi­cos e mui­tas mor­tes pela do­ença. Com a va­ci­na­ção de grande parte da po­pu­la­ção, como quase todos os va­ci­na­dos apre­sen­tam algum nível de pro­te­ção, o vírus tem bem mais di­fi­cul­dade de con­ta­mi­nar ou­tras pes­soas e o nú­mero de novos casos tende a cair até pró­ximo de 0. Por­tanto, as va­ci­nas fun­ci­o­nam de fato ao nível co­le­tivo.

Tudo isso mos­tra a im­por­tân­cia de va­ci­nar­mos a grande mai­o­ria da po­pu­la­ção o mais rá­pido pos­sí­vel. A efi­cá­cia con­tra Covid-​19 de uma va­cina na ge­la­deira (ou de não tomar va­cina) é sem­pre 0. Logo o foco deve ser au­men­tar a che­gada de novas doses e, ao mesmo tempo, usar todas as doses em es­to­que. O Bra­sil sofre com pro­ble­mas nas duas fren­tes: de um lado, ne­ga­mos acor­dos de com­pras e re­ce­be­mos doses de forma atra­sada; de outro, por mo­ti­vos di­ver­sos, ape­nas os es­ta­dos de São Paulo e Mato Grosso do Sul usa­ram mais de 80% das doses re­ce­bi­das até 15/06/2021. A cada dia que doses pas­sam na ge­la­deira — ou se­quer foram com­pra­das — 2000 bra­si­lei­ros mor­rem de Covid-​19. A nível in­di­vi­dual, é um grande alí­vio re­ce­ber uma va­cina e estar mais pro­te­gido. Mas, como agora você sabe, a pro­te­ção dos va­ci­na­dos tam­bém de­pende do con­trole do nú­mero de casos da do­ença, o qual virá con­forme o nú­mero de va­ci­na­dos au­men­tar.

Footnotes

  1. Bol­so­naro volta a lan­çar dú­vi­das sobre a Co­ro­na­Vac, mas diz que ela é “do Bra­sil”



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